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Maternidade compulsória

Precisamos falar sobre maternidade compulsória.
Uma das formas de dominação dos homens sobre nós, mulheres, é através da reprodução. Não é à toa que existe essa cobrança desenfreada pra que tenhamos filhos assim que passamos, geralmente, dos 25, ou, tão logo resolvamos juntar as escovas de dentes. É uma cobrança tão naturalizada, e é tão intrínseca à nossa socialização, que nós a internalizamos. É muito comum em rodas de conversas de amigas a partir dos 25 anos essa preocupação. Ainda que hoje em dia seja cada vez mais comum ver mulheres tendo filhos depois dos 38, muitas mulheres continuam se preocupando com o fato de não terem tido seu primeiro filho antes dos 32/35 anos.
Quantas mulheres conhecemos que, de fato, já se questionaram honestamente se realmente querem ser mães? Quantas mulheres conhecemos que já refletiram sobre a maternidade, a maternagem, e tudo que isso implica?
Existe, junto com essa socialização, uma romantização da maternidade, e isso é algo muito grave e muito distante da realidade. Não, ser mãe não é sempre lindo. A vida de uma mãe é bem distante da propaganda de margarina. Sim, temos momentos inesquecíveis e muito preciosos, mas é preciso muita cautela ao tratar dessas questões, porque, infelizmente, ainda hoje, a maternidade, muitas vezes, é uma carreira solo e solitária, e é um dos papéis sociais que a mulher vai cumprir com mais pressão de todos os lados.
O mito da maternidade cai por água abaixo assim que a mulher engravida, porém, é proibido falar sobre isso. A gravidez deve ser um momento mágico, ainda que não seja. A partir da gravidez, a mulher deixa de existir pra dar lugar à mãe, e, não bastasse todas as violências à que nós estamos sujeitas desde o nascimento, essa é uma das piores violências que uma mulher pode sentir. À mulher grávida já não lhe é mais permitido qualquer pensamento ou desejo para si. A partir do momento que a mulher passa pra condição de gestante, todo o seu universo deve ser em torno da gestação. A partir de então, já não se fala mais da sexualidade da mulher, das suas vontades, planos, pensamentos, sentimentos, desejos. Ainda que a gestação ocorra dentro do ventre da mulher, é como se todos tivessem direito sobre ela - desde o(a) companheiro(a) até o Estado.
Se a mulher, relativamente ao homem, faz parte da casta inferior, sendo, portanto, desumanizada, quando se torna mãe, a mulher torna-se invisível, pra dar lugar à figura da mãe, que, tal qual a virgem maria, precisa cumprir certos rituais sociais, e abdicar de sua existência em prol de sua cria.
É preciso falar sobre isso. Mulheres deixam de ser mulheres aos olhos da sociedade quando se tornam mães. Não podem ter vida social, vontades, desejos, impulsos, vaidades, ambições ou sonhos, sob pena de se tornarem as piores criaturas. Em contrapartida, homens, quando se tornam pais e cumprem o seu papel social de pais, cuidando, criando, educando, tornam-se como verdadeiros heróis na sociedade, sendo endeusados - inclusive, por mulheres.
Às mães não lhes é permitido ser mulher mais. É uma vida que deve ser deixada pra trás, esquecida, em um passado bem distante. Dessa forma, mulheres têm sido escravizadas através da maternidades ao longo de muitos anos. Dedicando-se exclusivamente às suas crias, enquanto que os homens ganham o mundo. Cria-se o mito da sogra má, aquela que dedicou a vida ao filho, e, ao vê-lo chegar à vida adulta, se vê abandonada pela nora. Mais uma arma do patriarcado usada na nossa socialização: rivalidade entre mulheres. Assim, mulheres não se reconhecem entre iguais, mas vêem-se como competidoras, inimigas, até mesmo dentro da mesma família, pois tudo gira em torno dos homens, que tudo controlam, tudo podem, tudo sabem.
É preciso falar sobre essa forma de dominação e sobre a invisibilidade da mulher que se torna mãe. É preciso lembrar, constantemente, que mulheres são seres humanos, possuindo, assim, diversos papéis sociais, e ser mãe é apenas um deles - ou pode nem ser. É preciso conscientizar as mulheres de que elas tem a opção de não serem mães, e que não há mal algum nisso.
Ser mãe é uma tarefa muito pesada. E, não, não são os filhos que são um fardo pesado. O que torna o papel social de mãe um martírio é a pressão e opressão social que vem desde o momento que nos tornamos mães, porque nenhuma de nós nasceu pra ser virgem maria.

Comentários

  1. Talita, você mostrou uma realidade que devemos parar para pensar e refletir sobre nossas vidas, sobre o que é ser mulher ou mãe. E cabe a nós ser as duas. Texto maravilhoso, obrigada pelas suas palavras.

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    1. Perdão pela demora, Sayuri, só agora vi seu comentário.
      Obrigada pelo comentário.
      Sim, ninguém nos prepara pra isso, não é mesmo?
      Um abraço.

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  2. Eh... estão me cobrando isso;
    "Lis, quando você vai parir?"
    É um porre, mas fazer o quê. Acho que a cobrança também é compulsória...

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    1. Sim. Essa cobrança é parte da maternidade compulsória. É como se nós tivéssemos menos valor enquanto não procriamos, ao mesmo tempo que, depois, passamos a ser invisíveis.

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  3. Queria entender o porquê da insistência de falar tanto em Virgem Maria. Realmente nenhuma de nós nasceu pra ser ela, até porque só existiu uma, assim como eu nasci pra ser eu, e não você. Muitas mulheres, ainda hoje em dia têm ela como exemplo e querem ser como ela, assim como outras não querem ser mães, o que é totalmente opcional. O texto foi esclarecedor, realmente algumas mulheres não entendem que ser mãe é um sacrifício, é se doar, porém nada disso precisa ser ruim.

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    1. Aí é que tá. Por quê tem que ser bom?
      Como dizer que passar noites em claro por mais de um ano pode ser bom? Como dizer que se anular, ainda que seja pelos filhos, pode ser bom? Abrir mão de planos, carreira, vida social, estudos, dentre tantas outras coisas. Por quê não podemos dizer que, sim, existe um lado cruel e pesadíssimo na maternidade?! Ainda mais levando em conta que a maioria é maternidade solo, independente de estar ou não com o progenitor.

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  4. Eu penso que a maternidade compulsória, além de atrelada ao controle sexual, corporal e político de mulheres, por elas e semente elas serem as responsáveis pela criação da prole de DOIS reprodutores, é o alicerce do capitalismo. Crianças precisam ser geradas para garantir a expansão econômica. Com menos jovens produzindo e muitos idosos consumindo, há uma preocupante desestabilização econômica. Por isso, defensores da maternidade obrigatória acusam lésbicas e gays (como se estes não pudessem ser pais independente da orientação) de destruidores de famílias. A ''família margarina'', com pai, mãe e um casal de filhos é propagada como modelo de plenitude emocional: o pais é consumidor e produtor, importante sustentáculo financeiro do sistema, a mãe a serviçal do marido e filhos, econômica e emocionalmente e seus filhos os substituirão na próxima geração. A ruptura da maternidade compulsória, na minha opinião, é o maior destabilizador do Patriarcado.

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